O atual governo propôs uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que ficou conhecida como PEC do calote. Trata-se do seguinte: o governo tem dívidas judiciais de diversos tipos para pagar. Por exemplo, uma empresa ganha na justiça o direito de receber de volta algum tributo pago a mais; ou um aposentado tem diferenças de aposentadoria para receber, conquistadas na justiça; ou uma prefeitura ganha na justiça o direito de receber um dinheiro a mais da União; ou… enfim, são muitas as situações em que o governo perde um processo judicial e tem que pagar algo a alguém. Se o valor da dívida é baixo (até 60 salários-mínimos – em Estados e Municípios o valor é mais baixo), o governo paga em 60 dias; se o valor for maior do que isso, vai para o tal precatório (que nome feio, né?), e a dívida deverá ser paga no ano seguinte.
Todo governo é louco por dinheiro, e você já deve ter percebido isso. O dinheiro nunca é suficiente, sempre dizem que está faltando, falam do tal cobertor curto (que cobre um lado e descobre o outro), mesmo com a arrecadação batendo recordes atrás de recordes. O atual governo, alegando o mesmo cobertor curto, e que precisa de dinheiro para conceder um tal “auxílio-Brasil” (bolsa-família com outro nome), resolveu tentar “empurrar” a dívida judicial com a barriga. A proposta apresentada pelo governo se dividia basicamente em dois pontos.
O primeiro ponto era o de parcelar a dívida. Ao invés de quitar, ano que vem, os precatórios emitidos este ano (o que sempre acontece), pagaria apenas uma parte ano que vem, e dividiria o resto para os anos seguintes. Qual o problema maior desta parte da proposta? É que todo ano entra mais dívida, mais processo que o governo perde (incrível, mas a cada ano ele perde mais processos!) e o total da dívida só aumentaria, levando algum governo futuro a quebrar. Este ponto não foi aprovado, pelo menos por enquanto: os deputados vão colocar isso em outra PEC, que está em discussão lá na Câmara, e minha esperança é que ela seja esquecida em alguma gaveta por lá.
O segundo ponto é a correção monetária da dívida. Como você sabe, o preço das coisas aumenta de tempos em tempos – veja o que tem acontecido com o preço dos combustíveis, por exemplo. Estes aumentos de preços formam a tal inflação. Se tudo aumenta de preço, a dívida que eu tenho para receber também precisa ir aumentando na mesma proporção. O mecanismo para fazer a dívida acompanhar a inflação se chama correção monetária. E daí? Daí que o governo quis mudar a forma de fazer a tal correção: no lugar de usar a inflação, quis mudar para a SELIC. Qual o problema disso? Explico: a SELIC não acompanha a inflação: ela é uma “taxa de juros apurada nas operações de empréstimos de um dia entre as instituições financeiras que utilizam títulos públicos federais como garantia”. Esta explicação está no site do Banco Central (https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/taxaselic). Como você pode perceber, não tem nada a ver com inflação. Juros é uma penalidade que você sofre quando atrasa um pagamento. É penalidade, não é reposição da inflação. Ah, sim, a SELIC atualmente está bem abaixo da inflação. Pasme: esta parte foi aprovada pelo Congresso!
Sobre a parte aprovada (uso da SELIC), chamo a atenção de que, em dois momentos anteriores, outros governos fizeram coisa parecida: em 1991 o então presidente Collor sancionou a Lei nº 8.177, que mandava usar os índices da caderneta de poupança para corrigir as dívidas públicas. No ano seguinte o STF declarou a inconstitucionalidade disso (ADI 493), justamente porque a poupança não repõe a perda inflacionária. Em 2009 o governo Lula resolve fazer a mesma coisa, através da Emenda Constitucional nº 62, e da Lei nº 11.960. Durante os últimos 10 anos arrastou-se no STF a briga sobre este assunto, e a conclusão foi a mesma de 1992: a poupança não repõe a inflação. Agora, Bolsonaro tenta fazer o mesmo, porém no lugar da poupança, está usando a SELIC. A taxa é outra, mas o motivo para a inconstitucionalidade é o mesmo. Pode ter certeza de que nos próximos meses vão pipocar ações pedindo a inconstitucionalidade disso, com o mesmo argumento. Não duvido que o desfecho será o mesmo das situações anteriores.
Enfim, como podemos perceber, governos são todos iguais, e repetem os mesmos erros dos anteriores, na base do “vai que cola”…
Um abraço, e até a próxima!