Esta semana a internet está pegando fogo porque a Câmara aprovou um auxílio de R$ 600,00 para o período da quarentena do coronavirus, mas ninguém explica direito as coisas… Vou usar este caso para explicar o funcionamento da coisa toda.

  1. Em 29.11.2017 o Deputado Federal Eduardo Barbosa (PSDB-MG) apresentou um projeto de lei, que recebeu o número 9.236/2017, para aumentar o limite de baixa renda para meio salário mínimo (o limite até então, previsto em Lei, era de ¼ de salário mínimo), e incluindo na Lei uma série de requisitos para enquadramento na baixa renda.
    1. Quando um projeto de lei (PL) é apresentado, ele é encaminhado para comissões que sejam envolvidas no assunto tratado no PL. Uma das comissões pela qual todo projeto deve passar é a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que vai avaliar se o projeto não contraria algo da Constituição; várias outras comissões poderão avaliar o projeto, e darão suas opiniões a respeito.
      1. Uma comissão é formada por dezenas de deputados, indicados pelos partidos e bancadas (os partidos e as bancadas são os ‘donos’ das cadeiras das comissões). Toda comissão tem um presidente, e é ele quem decide qual projeto deve ser analisado primeiro. Já dá pra perceber aqui que o cargo de presidente de comissão deve ser bem cobiçado, né?
    2. Ao chegar na comissão, o projeto vai para seu presidente, que deverá designar um deputado (a) como relator. O relator é quem vai estudar a fundo o projeto, vai receber as emendas apresentadas pelos demais deputados da comissão e, ao final, vai apresentar um relatório. Este é o momento mais democrático de todo o processo: é aqui que ocorrem audiências públicas, debates com especialistas, palestras aos deputados com os diversos pontos de vista sobre a matéria, etc.
      1. Se não é de interesse do presidente, ou se não tem pressão do governo, ou se… pode-se demorar uma vida inteira para designar o relator.
    3. Os deputados da comissão têm cinco sessões para apresentar emendas ao projeto – propostas de alterações no texto, que podem mudar desde apenas uma palavra, até o texto inteiro. Nós os elegemos exatamente para, como nossos representantes, levar a nossa opinião para dentro do projeto. Ok, eu sei que o deputado não pede tua opinião, mas deveria fazê-lo…
  2. Curiosidade: o projeto ficou na CIDOSO (Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa) por DEZ MESES, e não recebeu nenhuma emenda.
    1. Mas, não eram cinco sessões? Sim, mas só para apresentar emendas. Depois, tem mais um tempo enooooooorme para o relator preparar o relatório a ser votado pela comissão.
    2. Neste relatório ele pode apenas confirmar o texto do jeito que veio, sem nenhuma mudança, ou pode transformar o texto todo, a partir das emendas que os deputados apresentaram.
  3. No PL 9.236/2017 a CIDOSO aprovou o texto original, sem mudar nada. Demoraram quase um ano para não mudar nada.
  4. Da CIDOSO, o projeto foi para a CPD (Comissão das Pessoas com Deficiência). Entrou na CPD dia 07.11.2018, e começou tudo de novo: relator, emendas, etc. Ficou na CPD por SETE MESES, sem nenhuma emenda. Aprovado o texto original.
  5. Em 28.06.2019 o projeto foi então para a CSSF (Comissão de Seguridade Social e Família). Os deputados também não apresentaram emendas; porém, aqui teve uma diferença: o relator apresentou uma Emenda, que foi aprovada (ou seja, acrescentou um parágrafo ao texto do PL). Aqui a tramitação foi rápida: APENAS cinco meses.
  6. Em 25.03.2020 o Presidente da Câmara resolveu dar urgência ao projeto, e o chamou à votação – ou seja, chamou todos os deputados para votar e aprovar o texto original. Foi aprovado por unanimidade.
    1. No dia seguinte os relatores das comissões fazem seu relato ao plenário, para a segunda votação. O texto recebe, então, 22 emendas. Algumas rejeitadas, outras aceitas, e um novo texto surge, agora com o tal auxílio de R$ 600,00. Até então, quase três anos de tramitação, apenas para aumentar o limite de baixa renda para ½ salário mínimo. No final é que resolveram incluir este auxílio de R$ 600,00.
    2. E como será o auxílio? Como vai funcionar? Ainda não sabemos. Porque…
  7. O projeto, aprovado na Câmara, foi agora para o Senado. No Senado começa tudo de novo: comissões, etc, etc, etc. No Senado a tramitação é mais simples, o que pode deixar a tramitação mais rápida; por outro lado, o Senado pode mudar o texto todo.
  8. Caso o Senado altere alguma coisa no texto, ele tem que voltar para a Câmara, para os deputados aprovarem a mudança feita no Senado.
  9. Se os deputados mudarem algo no texto que veio do Senado, ele deverá voltar ao Senado, para os senadores aprovarem (ou não), a mudança feita na Câmara.
  10. Enfim, quando o PL fica redondinho, as duas casas concordando com o mesmo texto, então ele vai para a Presidente da República. O Presidente tem 30 dias para ‘sancionar’ o projeto – ou seja, transformá-lo definitivamente em Lei. Se passar os 30 dias e o presidente não se manifestar, o próprio Congresso o transforma em lei. Porém, nestes 30 dias, o presidente pode aprovar tudo, recusar o projeto inteiro, ou ainda vetar pedaços do projeto, e transformar só uma parte dele em lei.
    1. O PL 9.236/17 enfim foi para o Senado, e o Senado fez uma votação e aprovação-relâmpago: hoje, dia 30.03.2020, o PL foi aprovado sem alterações no Senado, e enviado à sanção do Presidente da República.
  11. Se o presidente recusar o projeto inteiro, ou recusar parte do projeto, o Congresso ainda pode derrubar o veto do presidente.

Depois de toda esta confusão, a gente volta ao tema deste texto: por que demora tanto? O objetivo da demora é justamente permitir que os deputados e senadores discutam os textos à exaustão, ouvindo a população, ouvindo as pessoas interessadas, escutando todos os envolvidos, para então aprovar uma lei que atenda de fato ao tema de que trata a lei. Portanto, a ideia é muito boa. Infelizmente, na prática, nem sempre as discussões acontecem de verdade, e muito projeto bom fica engavetado por anos e anos.

Este projeto que usei como exemplo aqui mostra que, quando existe vontade política, em poucos dias se discute, vota e aprova; porém, quando não existe esta vontade, o projeto fica (como ficou) meses e meses parado em comissões intermináveis…

P.S. Agradeço ao meu amigo Diego Cherulli que colaborou com a conferência e sugestões para o texto.

Um abraço, e até a próxima!